25 Nov, 2009
Mais um aborto
O que vale é que o aborto já está legalizado em Portugal, embora haja por aí, no dia de hoje, muitos dos seus críticos com uma tremenda carapuça enfiada na cabeça até às orelhas. É que este aborto não era, nem de longe nem de perto, desejado. Pelo contrário, este feto devia nascer e crescer suficientemente robusto para ser o fim de um pesadelo para muita gente, que desejava um funeral de gente grande, já largamente preparado, tal como antes de outros abortos.
Foi realmente um dia decepcionante para todos aqueles que andaram a deitar foguetes numa festa que, esfriando num dia, logo recomeça no seguinte, com redobrado entusiasmo, apesar de já durar há mais tempo que aquelas pilhas que duram e duram.
Volta não volta, como em todas as festas, lá aparece um contratempo inesperado e traiçoeiro, sempre provocado por alguém que fura o espírito festivo do pessoal. É como se um aborto interrompesse uma gravidez de risco zero. Acontecimento lamentável mas, tudo tem remédio, quando a vontade supera os contratempos que nos chateiam.
Portanto, não há problema, se uma gravidez abortou, vamos de imediato para nova gravidez, porque a festa não pode parar. Depois, há o precedente de haver gravidezes que duram anos. Apesar das barrigas inchadas e de alguns enjoos acidentais, o desejado nunca mais nasce, nunca mais aborta, nem nunca mais a coisa fica despachada.
Acontece que esta coisa, também tem a outra face. Nesta, a frase mais adequada é, nem o pai morre, nem a gente almoça, tal o estado de ansiedade que domina quem já está a deitar os bofes fora por causa das festas alheias. Sim, porque se os festeiros têm direito à manifestação festiva interminável, o causador dela não tem direito à indignação, restando-lhe a resignação de aguentar a pé firme e evitar a cerimónia fúnebre que lhe está preparada.
Estado de ansiedade que devia, no entender dos festeiros, levar o paciente ao tal funeral que também nunca mais chega, adiando assim, indefinidamente, o cúmulo dos festejos, que acontecerá quando se der o nascimento e o funeral. Não se sabe quantas gravidezes terão de vir ainda, com os respectivos abortos, nem tão pouco, se haverá defunto disponível para o desejado funeral.
Quando se olha demais para o funeral dos outros, há o risco de não se chegar lá, e ser o falso morto a acompanhar quem devia ser seu acompanhante. Sei que isto está tétrico demais para tantas festas ao redor. A verdade é que também já vou ficando farto de ver abortos, embora saiba perfeitamente que estão todos legalizados, apesar de haver frequentemente uma questão de prazos de semanas, meses, ou até anos, o que provoca algumas reacções negativas. Principalmente, por causa da limitação imposta pela tradição milenar dos habituais nove meses.
Porém, tudo isso são questões marginais, legalismos inaceitáveis, quando estão em causa coisas tão sérias como as festas e os funerais, principalmente, quando nunca mais chegam quando a gente tanto os deseja. A gente, salvo seja, esta gente é a das festas e dos funerais, que não pensam noutra coisa, só porque não têm mais que fazer, que meter-se na vida dos outros.
Contudo, é preciso ter muita calma, porque hoje foi um dia triste no meio das festas. O aborto inesperado e incómodo fez recuar muita língua, calou muita música e fez rebentar muitos foguetes na mão de quem andava a deitá-los alegremente.
Amanhã é um novo dia, no qual já ninguém se lembra do aborto porque, durante a noite, na cama, foi restabelecida a normalidade democrática, no intervalo entre dois sonos leves. Depois, é só esperar para ver o resultado.