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afonsonunes

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03 Nov, 2011

Cherne abrasado

Alguém, muito orgulhosamente, disse que se ele fosse um peixe seria cherne. Claro que nestas coisas de comidas é tudo uma questão de gosto. Eu, por exemplo, só gosto de peixes que não tenham espinhas, embora tenha uma preferência de excepção pelo peixe-porco, desde que esteja esfolado como deve ser.

Peixe sem espinha não é o mesmo que homem sem coluna, embora a coluna vertebral de um peixe qualquer, seja uma espinha maior ou menor. Mas a verdade é que há mesmo homens que não têm coluna que se veja, daí que nunca andem verticalmente posicionados na sociedade onde teimam em querer parecer o que não são.

Mas, deixando de lado os apartes descabidos, compreendo perfeitamente que o cherne é um peixe muito apreciado, sobretudo por essa Europa fora, onde a sardinha não entra, porque não é conhecida, e o peixe-porco custa um bocado a esfolar por falta de unhas como as dos nossos pescadores, ou de unhas arranjadas das amanhadas vendedoras profissionais.

Se amanhar o peixe não é tarefa fácil, também não é uma brincadeira saber colocá-lo sobre as brasas e dar-lhe as voltas necessárias até que fique loirinho sem que o carvão o abrase, deixando-o da sua própria cor. Passado pelas brasas sim, mas nunca devorado pelo calor de uma qualquer dissidência de peixeiradas politiqueiras.

Entretanto, ainda é muito prematuro estar a falar de cherne amanhado e muito menos grelhado, quanto mais, já abrasado. É verdade que por essa Europa fora já começa a olhar-se muito para ele, sentindo que não virá longe o dia em que vai mesmo à mesa, em travessa engalanada com uns legumes verdes cozidos e bem escorridos.

Ainda é difícil prever quem estará sentado a essa mesa, pronto a espetar-lhe o garfo e deixar na borda do prato a sua cabeça grossa e a espinha comprida, que irão cair depois, sem honra nem glória, no balde dos restos da cozinha, onde nem o gato mete o nariz. Enigmaticamente, esses convivas nem sequer terão um gesto de carinho para com as suas barrigas cheias.        

Cherne que levou uns anos a crescer no mar, mais uns anos a instruir-se em terra, eis que se vê num aquário dourado que parece não ter fim, mas alguém se vai lembrar que é tempo de o pescar e devolvê-lo à sua condição de peixe que não tem que aspirar a ter cabeça de gente que, essa sim, tem destino pensante.

Peixe que alguma vez é pescado, não mais se livra da sina da rede e, mais cedo ou mais tarde, lá vem o dia em que, depois de bem escamado, só pode aspirar a constituir uma ceia ou um almoço de gente tanto ou mais importante que ele foi, no cardume que foi toda a sua vida. E o cherne, peixe fresco e de qualidade garantida, não pode fugir à sua sina.  

Contudo, que ninguém pense que o banquete já tem data marcada. Muita água vai correr para o mar antes que tal aconteça e essa água vai trazer o cherne de volta à nossa costa, fugindo ao ritual que, lá fora, já é dado como certo. Uma coisa é lá fora, onde ninguém gosta de trincar espinhas, outra coisa é cá dentro, onde pouco mais há para trincar.

Com cherne, com sardinha ou com carapau do gato, havemos de nos desenrascar, principalmente, aqueles que tiverem a sorte, ou o desenrascanço, de filar uma postinha que não tenha só espinhas.