Noite de estrelas
Cerca de quatrocentos maduros foram ao cinema e, ao que parece, estiveram a ver um filme que já todos tinham tido o prazer de apreciar em ambientes mais íntimos, do tipo de, em família, ou em rodas de amigos mais ou menos concorridas.
Desta vez puderam falar mais alto, até porque as condições sonoras sempre eram um pouco melhores e as gargantas estavam mais abertas devido ao contágio entusiástico que se gera numa atmosfera previamente excitada de fora para dentro.
Foi um acontecimento sem par na história multisecular do país, acontecimento que começou pra aí uma semana antes e continuou nos dias seguintes, não se sabendo quando vai acabar, tal a retumbância que ganhou nos media.
Até há quem diga que teve um impacto muito maior na opinião pública que as peripécias da selecção nacional de futebol desde a estadia em Viseu até à sua saída da Suíça.
Cerca de quatrocentas pessoas!... Mas que acontecimento!...
Tudo indica que aí nasceu a grande mudança que vai levar o país ao topo das grandes nações, devido às descobertas inéditas ali reveladas pelas grandes cabeças que se abriram de par em par, pela primeira vez, resolvendo os grandes problemas do país e, mais modestamente, do mundo inteiro.
Ninguém esperava tanto, apesar das espectativas serem muito elevadas.
Agora, ninguém mais tem o direito de impedir o avanço daquela onda gigante que saiu do cinema e inundou Belém, São Bento, Terreiro do Paço, Largo do Rato e, calculem, até inundou as pontes 25 de Abril e Vasco da Gama, onde o trânsito ainda se faz a meter água, o que levou ao cancelamento do pagamento de portagens. Quem diria!...
Agora, e já não é sem tempo, haverá um consenso nacional à volta dos heróis que redescobriram o país e a sua gente. Agora, todos estão convencidos de que nunca mais haverá pobres. Agora, todos sabem que nunca mais haverá um único desempregado. Agora, é ponto assente que nunca mais será preciso virem para a rua contra as desigualdades sociais
Com grande confiança, o país ficou a saber que no filme exibido, se demonstrou que nenhum português vai ter menos rendimento mensal que cada um dos cerca de quatrocentos espectadores daquela sessão de cinema.
Finalmente, houve apelos constantes a que nenhum português, de agora em diante, tenha medo seja do que for, ou seja de quem for.
Mas, cá fora, à saída, ainda se ouviu um desabafo:
“Eu só tenho medo da fome!...”