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afonsonunes

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31 Out, 2008

Com esta chuva

 

O Verão já lá vai mas com ele não se foi o calor que arrasa muitas mentes simplesmente excitadas, ou mesmo exaltadas, apesar de terem passado os habituais dias de refrescamento nas proximidades das ondas do mar, ou nas montanhas das suas aldeias natais. Dos muitos que fugiram para mais longe nem vale a pena falar. A verdade é que não tem havido motivo nem condições para que as mentes esfriem, embora algumas abusem nas manifestações de calor.
Agora que a chuva chegou, ao poisar nas cabeças carecas ou cabeludas, logo se evapora como se caísse em cima de telhado ao rubro, sob o qual lavra um incêndio de ideias ardentes e inflamadas. Daí que a temperatura suba e o Outono ameace fundir os neurónios do mais pacato cidadão de antigamente.
A chuva refresca a terra onde pomos os pés a coberto dos sapatos que vêm do fim do mundo, feitos de material plastificado que não deixa penetrar o fresco, como acontecia com o antigo coiro do calçado das nossas fábricas lá de cima. Como resultado destas diatribes da globalite aguda, lá se foram milhares de portugas à vida, procurando um buraquinho qualquer onde possam dar o coiro ao manifesto.
Quem anda à chuva molha-se, porque está provado que não há guarda-chuvas que cheguem para tanta gente atirada para a rua, sem tempo nem dinheiro para se prevenir contra tais intempéries, que já nem esperam pela estação do ano mais molhada. È que a rua tem sobre a casa, a vantagem de não se pagar luz, além de se poder apreciar no comércio, com a vista, tudo aquilo que já falta lá em casa.
Os grandes colossos do G7 ou G8, que até podiam ser muito mais, ainda continuam a atarraxar os manípulos que levam à seca de tantas gargantas, onde cada vez passa menos, o fruto da chuva que ela devia transformar em abundância. Pelo contrário, cada vez se sente mais os efeitos das automáticas e mortíferas sucessoras das famosas e já ultrapassadas G3, que vão inundando de sangue os outrora campos de fertilidade.
A verdadeira chuva, verdadeira bênção da natureza, é fonte de riqueza e prosperidade, que só não agrada a quem tem como única ocupação, gastar o seu tempo a passear as ruas e a glorificar o esplêndido sol que tanto aprecia. Sol e chuva, cada um no seu lugar e na devida proporção dos benefícios que nos dão.
Bem pior, é quando um nevoeiro cerrado nos cerca e nos priva de ver o que se passa à nossa volta. É então que bem mais gostaríamos da chuva ou do sol. Mas, se o nevoeiro for limitado ao interior da nossa mente, então não há faróis milagrosos que nos iluminem o caminho.
 

O Parque já engoliu todas as barbaridades de oratória que atafulharam o vasto recinto, quase secando os lagos, os repuxos e os loureiros, todos corados de vergonha pelos piropos de saudosos do tempo de volta atrás, durante e após as obras do Pólis. A velha e poeirenta Devesa já se transformou nas Docas ruidosas, onde a juventude se rebola na relva e onde os adultos enterraram de vez, os hábitos da pacata e tradicional vida semi-aldeã. A cidade está um estaleiro geral, tal a revolução em curso, nas ruas, nos largos, nas avenidas, visando todas as infra-estruturas e a modernização do seu aspecto e funcionalidade.

 Ainda se ouvem alguns “queixinhas” porque as obras provocam pó e lama que os incomodam, principalmente, àqueles que nunca se incomodaram com o imobilismo em que a cidade estava mergulhada há muitos anos, perdendo visivelmente em confronto com outras cidades da sua dimensão. Mas, à medida que as obras vão ficando concluídas, os olhares conformados vão calando essas vozes, ficando as mágoas abafadas dentro dos peitos inchados e arfantes.
A cidade “hard” acordou finalmente para o progresso, mas uma pequena parte da cidade “soft” ainda dorme a sono solto, e reflecte bem a distância, tanto em quilómetros, como em anos, que nos faz levantar muitas dúvidas em relação ao que nos podia distanciar de outros meios em termos de mentalidades mais abertas, mais independentes e menos preconceituosas.
Há pequenos pormenores da vivência em sociedade que constituem grandes barreiras para que todos se sintam num ambiente de iguais oportunidades, em que não prevaleçam favores, simpatias, amizades, ou outras, em que as leis e o bom senso não sejam ignorados ou, simplesmente, atirados para trás das costas.
Ainda há alguns antigos “sargentos lateiros” neste moderno quartel que é a cidade do progresso. Ainda há arautos virulentos que têm espaço para se manifestar, sempre protegidos pelo abafar das críticas de quem lhes queira responder. Ainda há quem prometa zelar pelo cumprimento de leis, que depois só servem para atingir quem lhes seja desconhecido.
Mas, com o tempo e com os destemperos que exibem, mesmo publicamente, vão acabar por ser acordados da sua longa soneira, pois o tempo não anda para trás e a subserviência vai caindo em desuso. Aliás, o mesmo acontecerá a quem lhes continua a dar cobertura.
 
 
 

 

Em 2020 vai rebentar um grande escândalo. Haverá grandes caixas nos jornais. Haverá dias inteiros em que as televisões estarão permanentemente a repetir as diligências que estão a ser feitas para encontrar os execráveis criminosos que a justiça não procurou. O que os governos não fizeram para que a justiça funcionasse. Tudo o que os juizes ignoraram arquivando processos. Como já aconteceu em tantos outros escândalos, que foram atingindo a prescrição. Porém, a justiça tarda, mas não falta. Mais vale tarde que nunca.
Agora, sim, houve um levantar da consciência nacional e ninguém escapará ao juízo inevitável de um crime que nunca devia ter existido. Preparem-se os criminosos. Os seus nomes serão lançados nas longas listas da vergonha. Desta vez, finalmente, não haverá perdão, nem adiamento, nem amnistia. Porque também não haverá segredos de justiça, nem protecção de dados que lhes valham. Tudo será denunciado. Finalmente, toda a comunicação social se mostrará irredutível, contra o silêncio de dezenas de anos. Finalmente os caloteiros vão pagar. O fisco vai limpar o rol infindável de dívidas. Todos ao ataque! Se as prisões não chegarem, mobilizam-se os bons hotéis.

           

Não há instrumentos musicais intocáveis. Não há músicas nem músicos intocáveis. Mas tem havido, e ainda há, muitas pessoas e corporações intocáveis, devido a estatutos preconceituosamente estabelecidos e mantidos com base em argumentos elitistas verdadeiramente incompreensíveis. Daí resultam benefícios e privilégios que atentam contra as mais elementares regras de equidade que devem nortear uma sociedade justa e solidária que, como ainda é evidente, só existe na imaginação de alguns.

Contudo, isso não impede que se deixe de lutar por ela, porque o fruto mais desejado será sempre aquele que está mais difícil de colher.
Os intocáveis julgam-se insubstituíveis, porque prestam serviços indispensáveis, ou estão alcandorados em pedestais aparentemente inacessíveis a quem os possa apear, o que os leva egoisticamente a pensar que tudo o que querem, têm, obrigatoriamente, de obter. Melhor, tudo o que desejam, tem de lhes ser imediatamente oferecido em bandeja de prata, sob pena de prejudicarem toda uma sociedade que depende da sua actividade.
Os intocáveis sentem-se à margem de toda a organização do Estado, porque pensam que sem eles o Estado não funciona, ou funciona mal, logo, são eles, directa ou indirectamente, que querem controlar o Estado. E, o pior, é que, além deles, também há quem pense como eles, aplaudindo as suas atitudes, concordando com as suas exorbitâncias, quando, em alguns casos, podiam e deviam mostrar o poder que detêm, para acabar com tais aberrações.  
É verdade que não podemos passar sem padeiros, tal como não podemos passar sem professores, sem juízes, sem funcionários, sem cantoneiros do lixo, sem médicos… Pois não!... Mas podemos perfeitamente dispensar alguns intransigentes e malevolamente exigentes, que pensam que têm o mundo a seus pés. E se eles já estão fartos de nós, que se arranje maneira de alguém nos libertar deles e de eles se verem livres de nós. É a lei de quem não serve, nem gosta de servir. É a lei da troca do inútil por aquilo que nos faz falta. É a lei das leis fundamentais dos direitos dos cidadãos, em que todos, mas todos mesmo, são iguais perante a lei. Não há nenhuma lei específica para intocáveis.
Diz o povo na sua ilimitada sapiência, que quem não está bem, muda-se.
 
27 Out, 2008

Só podia ser ela

 

Não é que ele seja desconfiado por aí além, mas a verdade é que já tinha alguns indícios de que estava a ser perigosamente perseguido durante alguns períodos do dia, especialmente, quando mais devia concentrar-se nas suas obrigações profissionais. Apesar dessa sensação de alguma incapacidade para lhe resistir, fazia um esforço para ignorar essa desconfiança, que podia prejudicar bastante a sua imagem, caso viesse a ser do conhecimento público.
Sentado na sua secretária, a meio da manhã, depois de uma saída para a segunda bica, mais uma vez lhe pareceu que a tinha na sua frente, quase transparente, levemente provocante através de um sorriso dúbio, que o deixava naquela espécie de levitação do pensamento, à espera que ela o libertasse, por via do seu desaparecimento para lá da janela do gabinete, agora envolto numa penumbra consoladora.
Não tardou a chegada da hora do almoço, durante o qual se viu liberto de todas as tentações, até porque logo lhe ocorreu que, também ela, devia ter a sua hora de almoço. Ele, mais os seus companheiros habituais de refeição, renderam-se aos prazeres da comida bem regada e acompanhada de deliciosas conversas sobre os temas mais quentes da actualidade. Esta hora e meia bem passada, tinha o sabor de escassos minutos, contrariamente às longas e intermináveis horas de suplício laboral, apenas suavizadas pelos intervalos das bicas regeneradoras e dos momentos em que ela aparecia sorrateira no gabinete.
Era então, a seguir ao almoço, que ela era mais irresistível e sedutora, levando-o cerrar os olhos por algum tempo, por vezes longo, por vezes breve, se algum imponderável laboral, via telefone, vinha interromper aquele namoro em que ele e ela se envolviam quase instintivamente, naquela sessão diária habitual.
Não será muito difícil imaginar a identidade destes eternos apaixonados, discretos, silenciosos, muitas vezes secretos. Ele, é um espécimen de trabalhador, ainda no activo em certos locais públicos ou privados. Ela, desempregada, disponível, tentadora, é a irresistível Preguiça.
 
 
26 Out, 2008

O espectáculo

O espectáculo está permanentemente montado e os actores e actrizes estão sempre prontos a entrar em cena, exibindo os seus números com inteligência e firmeza, porque o público está ansioso por aplaudir generosamente o calor que vem do palco. É certo que também há uns ruídos dispersos que se identificam perfeitamente como sendo de um ou outro afinadinho que gosta de patear, mesmo antes do espectáculo começar.

Depois, há quem não goste de espectáculo algum. Argumentam que não nasceram para representar, mas tudo o que mais desejam na vida, é que lhes dêem a confiança necessária para falar em nome de outros, ou seja, para os representar. Dirão que é uma espécie de representação diferente. Seria se, depois, não surgisse o espectáculo de falar em nome de quem lhes deu confiança para tal, e em nome de quem lhes não dá confiança para nada.
Quem não sente vocação para representar, não deve subir ao palco, porque não há nada mais caricato que ver uma actriz sob as luzes da ribalta, com ar carrancudo, olhando de lado para a assistência, resmungando que não gosta de dar espectáculo.
 Está no seu direito de gostar do que lhe apetece e detestar o que não gosta. Mas, em boa verdade, o problema está em não gostar apenas do espectáculo que outros protagonistas exibem. Tudo, porque é assaltada pelo reconhecimento de que a qualidade do espectáculo que desejaria dar, é de qualidade muito inferior, e jamais conseguiria atingir um grau de competitividade aceitável, com aqueles que representam bem, e gostam mesmo de dar espectáculo.  
A única maneira de conseguir um bom espectáculo através do silêncio, é ser um actor ou uma actriz com a fenomenal capacidade de falar com os olhos, com o corpo todo, com a alma inflamada, e fazer do silêncio um hino à imaginação própria e alheia, de forma a contagiar a assistência levando-a a comungar e a viver o seu silêncio de ouro.
O palco é o lugar onde acontece espectáculo. O palco e o espectáculo, são a vida dos actores e das actrizes que não sabem viver fora dele. Quem não se identificar com ele, bem pode mudar de vida. Cada um é para o que nasce. Silêncio, a sério, só na missa ou no convento.
 
25 Out, 2008

A nossa estrelinha

 

 
No mundo há muitos milhões de milhões de seres humanos. No universo há muitos milhões de milhões de estrelas.
 
Diz-se que cada pessoa tem a sua estrela desde o momento que nasce. A partir daí, essa estrela comanda a vida em todos os aspectos determinando, invisivelmente, tudo o que de bom e de mau, virá a acontecer ao longo dos tempos de permanência dessa vida no espaço terrestre.
 
Não se sabe se as estrelas também morrem com as pessoas que tutelam. Se assim for, é de calcular que também nasçam no mesmo momento dessas mesmas pessoas, pois só assim será possível manter o equilíbrio quantitativo das duas espécies, para que se mantenham as boas e as más acções que ditam a felicidade ou a infelicidade, a sorte ou o azar que só a estrela de cada um, tem o condão de distribuir.
 
Não há contestação possível a esta espécie de sina que trazemos da origem.
Não há manifestações nem lutas que alterem este desígnio que nos guia através de uma espécie de foco luminoso que vem do alto, dum ponto indefinido do infinito, de uma estrela invisível com quem não temos hipótese de dialogar, nem acusar de agir com todos os indícios de ditadora. Sim, porque não podemos mostrar-lhe o nosso desagrado por não sermos ouvidos, por não sermos tidos nem achados na definição dos nossos objectivos de vida, no nosso sofrimento ou no nosso prazer.
 
Talvez tudo isso dependa da estrela que nos coube em sorte.
Talvez haja estrelas boas e estrelas más.
Talvez haja uma estrela rainha que distribui as estrelas segundo o seu inexplicável critério.
Talvez tudo isso esteja certo, ou talvez não passe de mais uma especulação igual a tantas outras que se nos deparam a todo o momento. Não há estrela que faça parar tanta especulação.
 
A minha estrela nunca me disse que eu próprio sou um especulador, ao atirar para o ar tanta coisa que não tem qualquer sentido. Essa falta de sentido crítico deixa-me a dúvida se devo continuar ou se devo parar.
 
Mais tarde ou mais cedo a minha estrela vai ter de tomar uma posição.
Só receio que essa decisão, quando surgir, sirva para me dar o eterno descanso. Provavelmente, a minha estrela, terá também o seu descanso definitivo.
 
 
24 Out, 2008

Conversa de quinta

 

O Anib e o Zé convivem na mesma quinta. Aparentemente há entre ambos uma relação geralmente considerada amistosa e de conveniência recíproca, motivo para satisfação de muitos, e grande preocupação por parte de outros. Situação normal, tendo em conta os complicados conceitos sobre o que são os interesses de cada grupo em causa.
Semanalmente, conversam à quinta e passam em revista os grandes e os pequenos problemas da quinta, sobre os quais se inventam depois muitos recados, e até puxões de orelhas, que não se notam no tamanho nem na cor das ditas. Cidadãos pacíficos.
“Oh Zé, explica-me lá esse descontentamento que vai aí pela quinta toda. Parece que já ninguém se ri, nem ninguém sai à rua… Eu não quero acreditar que isso seja verdade, mas é tanta gente a dizer o mesmo…”
“Ainda bem que falas nisso, Anib. São efeitos das mudanças absolutamente necessárias para que se avance da quinta para a sexta. Como já deves ter reparado, vai quase para vinte anos que o calendário da quinta não era ajustado. Se reparares bem, as pessoas já não se riem, porque há muitos anos que ninguém conta uma anedota com graça. É verdade que também não saem à rua. Tens toda a razão. Agarram-se à televisão, porque não querem perder um segundo do tempo de antena dos políticos…”
“Nunca tinha pensado nisso, Zé. Olha, fico feliz porque também sou político. Mas, também fico triste, porque, assim, a natalidade vai diminuir bastante, o que prejudica a renovação da classe trabalhadora da quinta.”
“Oh Anib, não te preocupes com isso. Quando passarmos para a sexta, tudo vai mudar. Além disso, já pedi um estudo detalhado sobre as mulheres que obrigam os maridos a fechar a televisão…”
“Os maridos, Zé? Olha!... Já quase ninguém casa. Uns namoram, outros juntam-se e os casados separam-se. Não sei onde é que isto vai parar, Zé. Tens de pensar nisso muito a sério, senão qualquer dia… “
“Está tudo controlado, Anib. Estamos quase a passar da quinta para a sexta. Se os homens não querem casar com as mulheres e vice-versa, casam eles com eles… e elas com elas...”
“Não, Zé, aí não estou contigo… Então, e os filhos?”
“Eu explico, Anib. Aí, eu também não estou contigo. Sabes, os filhos passam a vir pela cegonha. Como antigamente. Mas, hoje é quinta. Quando passarmos para a sexta…”
“Isso é muito complexo, Zé… Além disso, ainda não falei sobre esse problema lá em casa. E, como hoje é quinta, não devo pronunciar-me sobre uma matéria tão complicada. Mas, quem tem experiência dessas coisas, deve saber as consequências e, sinceramente, eu não sei…”
Pois, foi assim que nós ficámos a saber. A conversa de quinta volta para a semana.
 
 
22 Out, 2008

Por mim, trocava...

 

 
Não se trata de trocar berlindes por rebuçados, nem tão pouco trocar a namorada pela satisfação de qualquer capricho mais esquisito, intenção que já vai aparecendo, que mais não seja, como modo de chamar a atenção. No meu caso, pretendo apenas manifestar o desejo de efectuar uma simples troca entre uma coisa que me incomoda e incomoda muita gente, e outra coisa que já teve o condão de fazer figura, mas agora não serve para nada, nem para ninguém.
É uma troca que só seria possível fazer-se, se houvesse alguém que conseguisse remover impossíveis, através de uma varinha mágica que actuasse no pensamento e o transformasse em obra gigantesca. O estaleiro imaginário encontra-se em Leiria, cidade de belezas raras, contrastando com pequenas nódoas disseminadas aqui e além, talvez porque a tentação das enormidades fosse superior às realidades e utilidades possíveis.
A minha mirífica troca, se ainda fosse possível, consistia em devolver o estádio à origem e receber um rio limpo de adubos que fazem dele um campo de plantas sujas e mal cheirosas, onde só os patos bravos conseguem sobreviver.
O estádio custou um balúrdio e não serve para nada. O rio precisa de um balúrdio para ser devolvido às pessoas no estado em que as mais antigas o conheceram, com água corrente, limpa, transparente. Acontece que o balúrdio para limpar o rio não aparece e o balúrdio que custou o estádio, evaporou-se. Para a construção do estádio, o balúrdio apareceu de um dia para o outro. Para limpar o rio, há anos que se procura o balúrdio e ninguém faz nada para o encontrar.
É por isso que só um milagre poderá permitir a condensação do balúrdio que se evaporou, fazendo-o cair na cidade em forma de chuva purificadora de todo o ambiente que conspurca a região e afronta as pessoas que nela se fixam ou por ela passam.
Quem sabe se não haverá um extravagante milionário estrangeiro interessado em comprar o estádio. Mas só na condição de meter o rio como beneficiário do balúrdio recebido. Por mim, trocava já…
 
21 Out, 2008

O meu motorista

O facto de ser meu motorista não quer dizer que seja muito diferente dos outros, mas a verdade é que, um pouco à semelhança do que dizem uns filósofos mais modestos, ele tem ‘coisas ò abaixo’ e nem sempre emprega o travão em conformidade com o declive. Felizmente que ele não costuma enganar-se com as mudanças, revelando um cuidado muito especial para evitar a confusão entre a marcha atrás e a quinta, sem passar pelo ponto morto. Da segunda à quarta, velocidade, claro, o meu motorista, engrena na perfeição porque, diz a isso, que não está para comissionar brigadeiros, nem ser um dos heróis que mais contribui para a redução do défice dos stops.

O meu motorista não conduz um carro qualquer. Conduz o meu carro, um topo de vulgaridade, de uma gama média mas, que ninguém pense que foi gamado. Nem sequer proveio de um qualquer leilão de ocasião de apreendidos a motoristas muito mais audazes que o meu. E muito mais disponíveis para se candidatarem a um lugar no xadrez ou, em troca, a conseguirem um emprego a prazo certo, nos cívicos da moda.
O meu motorista tem carta de condução actual e já tive oportunidade de olhar bem para a fotografia dele, para comprovar que não é falsa. A gente ouve falar em tanta coisa falsa, que já não confia em nada, nem em ninguém. Mas não são só os patrões a desconfiar dos motoristas. O contrário também acontece com alguma frequência. O meu motorista nunca me pediu o bilhete de identidade mas, se pedisse, eu mostrava-lho com a melhor das simpatias, pois isso só demonstrava que ele não é um trouxa qualquer que não toma as devidas precauções relativas à sua profissão.
Pode entrar em excesso de velocidade uma vez por outra, com minha autorização. Pode até fazer a sua aselhice que eu, reprovando, compreendo, pois até o oiço desabafar com os seus botões, chamando a si próprio aquilo que eu lhe devia chamar a ele. Já o ouvi falar em burro e estúpido, mas eu nem ligo. Sei que o burro, é burro e está tudo dito. É claro que eu nunca toleraria que outro motorista dissesse coisas dessas ao meu motorista. Nem que eu tivesse de fechar de imediato todos os vidros do carro para não ouvir tais barbaridades. O meu motorista e o meu carro são o meu mundo.
É por isso que, ao contrário de muita gente, sou eu que conduzo os destinos da minha vida e não qualquer Chico Esperto que se arroga na cretinice de me querer conduzir ao sabor de uma qualquer ilusão que lhe tolda a mente. Também eu tenho as minhas ilusões e as minhas aselhices na condução da minha vida, como toda a gente. Mas, uma coisa é o nosso próprio despiste, outra coisa, bem diferente, são os acidentes de motoristas irresponsáveis que nos conduzem a desastres irreparáveis. E há tantos.
É por isso que o meu motorista, sou eu.
  

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