De mouro a afilhado
Não é fácil ser mouro nesta terra onde se vê tanta gente com bons padrinhos que proporcionaram grandes baptizados, que mudaram a vida de tantos afilhados. Penso que toda a gente sabe que mouro é toda a pessoa que não recebeu o sacramento do baptismo. Para o receber, naturalmente que são precisos padrinhos.
Daí que se diga que quem não tem padrinhos morre mouro. Deixando para lá a parte infiel ou religiosa da questão, do que se trata aqui é de cunhas, pedidos, passar por cima de direitos de outros através da pequena ou grande corrupção, tão discutida ou tão badalada nos dias de hoje, como se isso fosse uma novidade hodierna.
Foi o Zé que me fez lembrar esta história de mouros e padrinhos, porque o Zé, desde que o conheci, sempre notei nele, aquela falta de jeito para as coisas mais simples, a começar pelo discernimento lógico de qualquer pessoa em desenvolvimento vital, sem aquela lentidão que denuncia algumas dificuldades.
Com mais ou menos marradas nos livros, o Zé lá foi passando os anos. O pior veio com o fim dos estudos e a luta para conseguir o tão difícil emprego, difícil porque o Zé, que já estava baptizado desde quase após o nascimento, considerava que não tinha o padrinho certo para o meter no mundo do trabalho.
Depois de muitas tentativas frustradas, resolveu arriscar uma carta para um director de pessoal de uma grande empresa. Com o choradinho expresso nas linhas da carta, esta finalizava com a certeza de que quem não tem padrinhos morre mouro que era, nem mais nem menos, um apelo dramático a que o aceitasse como seu afilhado.
Em boa hora o fez, pois esse foi o seu primeiro padrinho, não sei se a custo zero, mas que lhe abriu a primeira porta, fazendo dele, não propriamente um mouro de trabalho, mas um afilhado fiel pronto para todo o serviço.
Descoberta a chave do êxito, as experiências foram-se repetindo. Hoje, o Zé tem vários padrinhos em diversas actividades do tipo de topa tudo, mas sempre desempenhando o papel de afilhado incondicional ao dispor, venerando e obrigado, por tudo o que lhe têm dado. Sempre em troca da servidão que ele dá.
Ele elogia os seus padrinhos com um fervor que impressiona, tal como se atira a quem não recebe as simpatias deles, com um furor que fulmina através da palavra espumada de raiva, como através do olhar envenenado que o põe fora de si. É assim que os padrinhos gostam dele. Porque era assim que eles gostavam de poder ser, mas melhor é terem quem faça isso por eles. E o Zé faz com todo o empenho e com todo o gosto.
Falando claro, o Zé é um bajulador nato, que se sente nos píncaros da sociedade só porque gravita à volta de gente importante, daquela gente que precisa que alguém diga bem de si, para mostrar aos seus iguais que tem popularidade.
Este Zé e os seus padrinhos não se movimentam nas altas esferas da política, mas fazem parte dos papagaios que falam de tudo, que sabem tudo, que pretendem ensinar tudo a quem até pode saber mais que eles.
São uma espécie de apóstolos da política, capazes até de pretender superar o seu Cristo, dando-lhe receitas para a pregação e sugestões para a evangelização dos infiéis. Mas a sua doutrina vai toda no sentido de ganhar o seu próprio céu.
Se conseguirem ser felizes na terra, já se podem dar por muito satisfeitos.