Polvos e pintos
Há muita gente a dizer que já não percebe nada do que se passa no país de polvos sem cabeça e até de polvos de cabeça perdida que levam outros polvos, mesmo cabeçudos, a enterrar a cabeça na relva, que é onde lhes dá mais jeito. Eu diria que não se passa nada, pois há muito tempo que descobri os meandros daquela guerra tentacular que mina os donos das bolas e contamina até os pobres apanha bolas cá do burgo.
E também descobri há muito tempo que os pintos com bolas são especialmente caracterizados por depenicarem muito bem na relva onde encontram as tais cabeças de polvo enterradas, às quais juntam os seus tentáculos de pintos ‘polvoeiros’, que é uma espécie de polvo com penas ou, se quiserem, uma espécie de pintos tentaculares.
Depois, esta guerra há muito que tomou aspectos bem pitorescos, se considerarmos que há quem pense que os pintos são todos do norte e os polvos são todos do sul. Puro engano, pois isto já anda tudo misturado, tanto lá em cima como cá em baixo, tanto na relva como nas alcatifas, tanto nos que mandam, como nos que deviam obedecer.
Já não me custa nada admitir que os pintos que cantam de galo são demasiado sensíveis a jogadas mais ou menos limpas mas, de qualquer modo, limpas. Vai daí que, quando pensam que alguém lhes está a fazer uma finta, ainda que imaginária, ou mesmo uma simples finta de língua, toca a levantar a chuteira de pitons em riste e aí vai disto até ao interior profundo do osso da canela.
Ai, eu sou cabeça de polvo? Então espera aí. Como tu não és pinto, nem nunca vais cantar de galo, tal como não tens um secretário para te recomendar a dose certa, ninguém te livra dos meus tentáculos, pois fica sabendo que eu não sou apenas a cabeça. Sou também o corpo inteirinho de um grande polvo cabeçudo.
No fundo, isto gira tudo à volta dos pintos do meu país, pintos calçudos, cuja única utilidade tem sido a de produzirem muito estrume, tanto, que chega e cresce para estrumar todos os relvados do país, ainda com alguns excessos de produção que gentilmente cedem aos amigos lá de fora, onde o estrume mais escasseia.
Embora haja quem deteste estrume, principalmente de pintos, eles juram a pés juntos que o seu estrume é um asseio, muito completo em termos de composição, o que por si só justifica o retumbante prestígio de que goza lá fora, embora cá dentro, para não variar, é convicção generalizada de que cheira demasiado mal.
Mas isso não quer dizer nada, porque quanto mais mal cheiroso for, mais freneticamente ele será aspirado por milhares de narinas inchadas que o sugam como se de uma regeneradora droga se tratasse, como se fosse mais que reconfortante para neutralizar as muitas frustrações que o dia-a-dia cruel e insuportável lhes cruza as vidas, ora monótonas, ora explosivas.
Polvos e pintos, estrume e droga, eis quatro coisas que me sugerem um mundo surreal, onde a realidade se cruza com a ficção, onde aquela é enganada e esta é um desengano, onde o cheiro nauseabundo é consumido por muitos como perfume raro, onde os homens e as mulheres que não são pintos nem polvos, precisam de máscara para andar no meio daqueles.
Neste mundo onde as transformações genéticas já não constituem surpresa, nem pela qualidade, nem pela quantidade, tudo me leva a aceitar que os polvos já são tão pintos, como os pintos já sabem mesmo a polvos. Depois, vá lá saber-se quem sabe ou não sabe lidar com todas estas e outras drogas.
Qualquer dia lá temos de gramar, em qualquer restaurante, a norte ou a sul, um polvinho da guia, ou um pintinho à lagareiro. Eu sei que há gostos para tudo, mas enfim…