Coragem, meu!
Nem sei porque carga de água havia de estar a encorajar-te, sabendo como sei, que és extremamente corajoso, mesmo quando estás a fazer coisas que te obrigam a fazer, com uma pistola encostada à cachimónia. Bastava ouvir as tuas proclamações da muita coragem que possuis, tanta, que ainda ninguém a ultrapassara no passado.
A coragem não se mede nas palavras proferidas ou no calibre da arma que empunha o ameaçador. A coragem, meu, vê-se ou não, no chão, junto aos sapatos, nesses momentos de aflição. E ainda ninguém foi capaz de descobrir nadinha que denunciasse qualquer fraqueza vinda de qualquer tremura emocional da tua parte.
Sei perfeitamente que nada do que dizes tem outra maneira de ser feita, que não seja aquela que a tua mente capta, molda e determina. Esta é a tua maneira corajosa de me explicar que, por mais que eu queira interferir nas tuas captações, tu, meu, sempre me consegues convencer de que a minha razão é uma inutilidade, mesmo uma aberração passadista.
Corajosa é a tua postura moderna, aquela nova maneira de me demonstrar que as tuas teorias do passado foram devidamente recicladas, de tal modo que ninguém do presente pode ter a lata de as não poder considerar novinhas em folha, com rótulo brilhante e instruções de uso em latim corrente.
Aliás, as tuas teorias têm actualização quase diária, muitas delas sujeitas a reciclagem semanal, numa demonstração inigualável de coragem transbordante na tua capacidade de execução de cambalhotas e acrobacias de alto risco. Sobretudo, na coragem da transferência das tuas virtudes para currículos alheios.
Admiro sobretudo a tua coragem quando consegues, não sei como, transformar uma ordem, num compêndio com ordens para todos os gostos, excepto para o meu gosto, que é altamente contrário a tudo o que é reciclagem mental. Assim, de uma ordem para criar cem pobres, tu consegues criar mil.
Sei que sou eu que estou a precisar de reciclagem mas, em boa verdade, ainda não estou mentalmente preparado para essa operação. Amanhã pode ser tarde, porque posso ter que a pagar. Aliás, todas as operações e todos os actos, dos mais simples aos mais complicados, vão passando de tendencialmente gratuitos para obrigatoriamente pagos.
Olho à minha volta e vejo-me fora de contexto, apuro o ouvido e oiço ruídos estranhos. Sim, eu sei. São os teus reciclados cordelinhos a movimentar-se com um incrível afã de diligência, transformando o obviamente necessário, no desnecessariamente infligido, para que alguém te diga que estás no bom caminho.
Esse caminho só é bom para quem te guia e tu, meu, aceleras os passos, para nos convencer de que temos mesmo de seguir religiosamente esses passos, para garantir a tua e a nossa sobrevivência. Porque a tua banca rota já se transformou numa banca sustentável e o teu pesadelo nacional já saiu do país para a Europa e já corre a caminho do mundo global.
Olha, meu, há muitas coisas que te mandaram fazer, com as quais eu concordo plenamente. É urgente, é preciso, quanto mais depressa melhor, que essas coisas saiam do armário onde estão depositadas as tuas obrigações. Mas essas estão corajosamente a marcar passos e obrigam os teus soldados a trocar os passos.
O que não quer dizer que os teus maus passos não pudessem ser trocados por outros passos melhores. Que teriam de ser muito mais corajosos, pois a coragem nunca tem limites. Pois é, meu, este país, que também é meu, não pode ser tratado como se fosse apenas teu.