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afonsonunes

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31 Jan, 2012

Coelho manso

O país cinegético adora um bom prato de coelho à caçador, de preferência onde se inclua coelho bravo, muito mais rijo e saboroso que o manso. Obviamente que, sendo manso, é muito mais molinho, uma vantagem para quem já tem poucos dentes de origem.

Qualquer chefe cozinheiro sabe perfeitamente fazer com que o coelho bravo ou manso adquira a textura correcta de modo a ser apreciado como uma das muitas delícias da gastronomia portuguesa, pois os tachos, só por si, já têm aquele tarro que de tudo faz óptimos petiscos.

Tacho português e coelho português querem dizer que estamos bem entregues no que toca a paparoca. Sobretudo, no que toca a coelho manso, pois o coelho bravo está pela hora da morte, no que mexe com o preço e na facilidade de o encontrar.

Feliz de quem tem um bom parente caçador e frequentador de uma daquelas coutadas que o país ainda tem e onde se pode caçar com a tabela de preços sempre na frente dos olhos. Mas, quem quer ter bom coelho bravo para si, para a família e para os amigos, está bem.

O resto do país tem de contentar-se com o coelhinho manso que, coitado, lá vai enganando muita gente, principalmente nos restaurantes sem iva. Mas o coelho também o não merece, por mais marinado e por mais temperado que o metam nas tachadas que apresentam.

Dizem os entendidos que o coelho manso, se for bem esfregado com carqueja, perde muita daquela doçura que o caracteriza e adquire aquele acre característico do coelho bravo. Depois, dizem que se deve temperar com alecrim, talvez aos molhos, para saber ao que não é.

O nosso coelho manso já lá não vai com carqueja nem com alecrim, porque foi baptizado lá fora, na moleza do calor tropical e amansado, também lá fora, nos densos e poluídos ares germânicos, para onde os caçadores furtivos cá de dentro o mandaram a temperar-se.

Já ouvi dizer que lá, na Germânia, não há carqueja de jeito, portanto, coelho, só doce. Aliás, não é qualquer coelho que aguenta ser esfregado com carqueja. É demasiado abrasiva para peles de leite-creme não queimado. Mas o nosso coelho bem merecia esse castigo.

Castigo porque ele é manso de mais, desde que a Germânia o devolveu já temperado, com carqueja de menos e alecrim de mais. Os caçadores furtivos também não lhe acham todas as virtudes que gostariam e, de vez em quando, tossem ao mastigá-lo com mais vagar.

Com alguma razão dizem que não era preciso ir lá tão longe, a gastar dinheiro em embalagem, quando cá, ainda o temperavam melhor, nem que fosse com uma boa porção de pimenta na língua e uma ou duas malaguetas bem vermelhinhas para espevitar.

Os caçadores devidamente munidos da sua licença, habituados ao coelho bravo das serras do norte e centro, ou das planícies alentejanas, estão em polvorosa. Dizem que lhes estão a estragar o negócio, vendendo gato por lebre a todos os consumidores, alegando que o coelho não é para o povo.

Mas qual coelho, dizem os consumidores. O que vem da Germânia já temperado devia ser imediatamente devolvido, metido numa marinada de vinho do Cartaxo, com muita carqueja por baixo e por cima. Depois, que nos digam se gostam.  

 

 

30 Jan, 2012

Portugal precisa

Se Portugal precisa de alguma coisa, os portugueses precisam mesmo dessa, ou de outras coisas, que lhe fazem falta para levar uma vida normal de gente que tem direito a pertencer a um mundo civilizado. Principalmente, os portugueses que nem ganham para comer.

Mas, os portugueses não precisam apenas de comer. Precisam de viver em liberdade, aquela liberdade que permita a qualquer cidadão defender-se de quem se habituou a viver à custa dos seus semelhantes mais incautos, menos instruídos ou, simplesmente, perseguidos.

Que a justiça em Portugal se encontra num estado vergonhoso é um sentimento generalizado do mais simples e modesto cidadão, que não pode recorrer a ela, até ao mais ilustre e poderoso graúdo que a manobra e distorce, através da distribuição do dinheiro que não lhe faz falta.  

Tudo a coberto de uma rede invisível de agentes das mais diversas origens e dos mais diversos intervenientes que, entre si, de modo mais ou menos concertado, acordam na decisão ou prescrição de todos aqueles casos que nunca mais acabam, ou acabam como se não tivessem nascido.

Manda-se falar de muita coisa que apenas serve para desviar atenções e manda-se calar quem se atreva a falar do que não convém. A ordem agora é: Calem-se! Manda-se averiguar aquilo que não prenuncia nada, mas manda-se ignorar tudo aquilo que está à vista de qualquer cegueta.

Assim, desde há muitos anos, os criminosos provados e alguns até julgados, passeiam-se impunemente, alegremente, rindo para quem gostava de lhes cuspir na cara. Isto enquanto alguns cidadãos são julgados na praça pública, só porque alguém julga que são criminosos.

Em Espanha há um juiz corajoso que decidiu enfrentar todos os poderes e todos os lóbis e, por isso, e só por isso, está a ser acusado e prestes a ser julgado pelo sistema que se sente ameaçado, precisamente, o sistema franquista, que ainda é muito poderoso em determinadas classes.

Refiro-me ao ex super juiz Baltazar Garzon que chegou a afrontar o falecido ditador Pinochet. Hoje, muitos milhões de espanhóis estão indignados, revoltados, com os passadistas que o querem ver atrás das grades, provavelmente, porque se não sentem seguros.

Em Portugal, não tivemos Franco, mas tivemos Salazar. Não temos franquistas, mas temos passadistas que não suportam ver diminuídos os seus poderes discricionários em relação a tudo e a todos que se atravessem no seu caminho.

É por isso que estamos a precisar de um homem acima deste sistema, não do tão falado sistema do futebol, que é real, mas do sistema que paralisa a justiça, ou que a deforma, ao correr das conveniências exclusivamente de natureza política, já que outras não se vislumbram.    

Em Portugal, esse homem de que se precisa, não existe. Em Espanha existe, mas não o querem lá, ou querem metê-lo na prisão, o que é um desperdício. É uma oportunidade sem par. É uma oportunidade única. Haja alguém que o vá buscar.

De certeza que passaríamos a ter um juiz com dois olhos abertos. Um olho aberto para cada lado, dos beligerantes em confronto. Portugal precisa de um Baltazar Garzon.

 

 

29 Jan, 2012

Tralha

 

Cada vez vou ficando mais convencido de que nunca, jamais, em tempo algum, vi tanta tralha à minha volta, como agora. E, bem vistas as coisas, a tralha também se mexe por baixo e por cima de mim, sem que eu consiga libertar-me dela ou fazer com que ela não me sufoque.

Estou mesmo muito preocupado com a possibilidade de essa tralha se vir a transformar em metralha, dados os sinais que a todo o momento se perfilam perante os meus olhos. Já tenho alguma dificuldade em distinguir sinais, da verdadeira tralha riscando os ares que eu tenho de respirar.

Esta ameaça de tralha, ou melhor, a existência de uma outra tralha denunciada há uns tempos atrás, deixou-me na dúvida, visto que não a sentia directamente, embora o volume do clamor à sua volta, me não permitisse negá-la em absoluto.

Entretanto, tudo pareceu voltar ao estado normal da minha vidinha calma e serena, esquecendo as coisas tristes que já lá vão. O pior foi o aparecimento de novas coisas tristíssimas que começaram a chegar, trazidas por uma autêntica metralha cerrada de mentiras.

É verdade. Se a tralha antiga se foi, aí temos a maior metralha de todos os tempos da minha vida. Isto agora já não é só a tralha que uns senhores nos trouxeram em mão. Em muitos aspectos, tenho de reconhecer que foi uma tralha útil e necessária para limpar este ambiente de cortar à faca.

Mas quem diria que, com ela, se misturou uma tralha de gente que começou a ver coisas com que sempre sonhou em criança e, vai daí, toca de começar a espingardear em todas as direcções, tralha que não abre sequer os olhos para ver para onde faz pontaria.    

Neste campo de batalha virtual, começam a surgir os primeiros sinais de que a artilharia pesada se prepara para entrar em acção, utilizando tácticas e programas já ensaiados quando a guerra se desenrolava com os beligerantes instalados em barricadas contrárias às de hoje.

Da batalha barulhenta passou-se para a guerra do silêncio, para que se não vejam as barracas que andam por ali. O combate em silêncio repõe a teoria da claustrofobia, só que esta agora parece ser anti-democrática, muito mais eficaz que a outra, que se dizia democrática.

Sobre a tão badalada batalha contra a pobreza, esta tralha desatou a hipocrisia e iniciou a guerra a favor da riqueza imoral e, por vezes, criminosa. Que vai colocando estrategicamente, paulatinamente, em lugares de onde vai tirando gente séria, por pura sede de vingança.

Tralha esta que apregoa ser competência em todas as suas divagações substitutivas, onde se nota a olho nu, uma senilidade indisfarçável ou uma juvenil inexperiência evidente. Senilidade que sempre tem andado ligada a todo este rol de barracas e de guerras do poder pelo poder.

Tudo até teria um ar de tralha normal, se não tivesse sido anunciado o seu enterro definitivo. Afinal, a tralha ressuscitou antes ainda de ter sido enterrada. Assim, nem sequer podemos rezar pela sua alma. 

 

 

28 Jan, 2012

Lambões

 

Já lá vai muito tempo sem que tenha ouvido este termo esquisito, que considero uma alarvidade, mas que assenta que nem um gorro, na cabeça de gente que tem um estômago insaciável ou, em sentido mais actual, uma carteira sem fundo, ou um saco que nunca enche.

Não porque entre nele uma pequena quantidade de vil metal, relativamente à sua dimensão, mas porque, por mais milhões que lhe metam no interior, nunca conseguirão enchê-lo. Do mesmo modo que nunca ficará satisfeita a vontade de nele meter cada vez dinheiro.

Assim, os muitos alambazados que o país alberga, por mais que lhes paguem, ou roubem, nunca estão satisfeitos. Querem sempre mais, cada vez mais, ainda que vejam à sua volta cada vez mais miséria, cada vez mais situações de gente que não consegue sobreviver sem ajudas.

E essas ajudas, em muitos casos, vêm exactamente de gente que pouco mais tem que aquilo que lhe permite aguentar-se dividindo, mesmo assim, esse pouco, com os que não têm mesmo nada. É nesta gente que se sente o peso da palavra solidariedade.

E, ali ao lado, os lambões passam e viram a cara para o lado, porque não querem ver aquilo que devia provocar-lhes uma enorme dor na consciência, que é o contraste da sua vida de excessos, com a total carência nas mais elementares condições de outras vidas. 

Pior que a consciência destes lambões, é a consciência de quem podia e devia pôr cobro a tais disparidades, dando seguimento a todas as palavras ocas que todos os dias proferem, pretendendo, vergonhosamente, lançar poeira para os olhos de quem julgam impedir de ver.

É frequente ouvi-los dizer: os portugueses sabem… É verdade. Todos os portugueses sabem, embora nem todos saibam, ou queiram, ver as coisas da mesma maneira. Mas, todos os portugueses sabem, ou vêem muita coisa que os lambões e seus protectores pretendem ocultar.

Toda a gente conhece e vê os grandes lambões. Uns, olham para eles e detestam a sua insensibilidade. Outros, piedosamente, lamentam que haja gente assim. Outros ainda, vêem neles os seus ídolos, os únicos que lhes garantirão um lugar próximo da sua mesa.

Todos sabemos como este mundo é uma bola mágica onde cada um vê o que sabe. O problema é que a bola não dá a todos a mesma visão. Cada um julga sempre que vê melhor que qualquer outro. E, se puder, cada um tentará convencer o outro de que só ele vê a verdade.    

Mas, na verdade, lambão que protege lambões, metendo-lhes mais dinheiro nos sacos cheios, acaba por ser um dos aprendizes de lambões de hoje, convictos de que serão eles os lambões de amanhã, quando chegarem à situação daqueles a quem hoje protegem despudoradamente.

É chocante verificar como no extremo oposto a estes alambazados, tudo falta, em contraste com o que tudo sobra e se desperdiça ingloriamente, sem um assomo de compreensão para com o desmoronar de tantas vidas de pessoas indefesas e de tantas injustiças que não comovem ninguém.

Por causa de tantos lambões, o mundo vai rebolando as suas convulsões, cada vez mais violentas e imprevisíveis. Por cá, costumamos ser muito calmos, muito serenos, de brandos costumes. Mas já fomos mais. Portanto, convém ter algum cuidado.       

 

 

Se eu tivesse possibilidades, já teria comprado uma calculadora para fazer contas rapidamente sem me enganar. Especialmente agora que estou cheio de curiosidade em saber o resultado de uma multiplicação de trinta mil pessoas por cinquenta cêntimos.

É que eu sou muito lento nas contas, mesmo as de dois simples dígitos, como a soma de dois, mais dois. Evidentemente, quando entram milhares misturados com dezenas não tenho mesmo capacidade de resposta sem a respectiva calculadora.

Pretendia eu saber quanto renderá um peditório a trinta mil pessoas que, segundo cálculos muito fiáveis, se comprometeram a contribuir com uma moeda, para uma acção de benemerência qualquer. Se me não falha a memória, será para entregar a um futuro desempregado.

Os cinquenta cêntimos acima referidos não aparecem ali por acaso. O peditório não especifica que espécie de moeda os contribuintes do dito devem pôr na bandeja. Logo, eu estipulei que será uma média dos que dão um euro ou mais, com os que vão dar menos de cinquenta cêntimos.    

Sim, porque a vida não está igual para todos. Se estivesse, este peditório não seria necessário, logicamente, porque também não haveria o tal desempregado a precisar de ajuda. Mas, estou absolutamente certo de que toda a gente tem entre cinco cêntimos e dois euros para contribuir.

Aliás, até sou capaz de estar para aqui a fazer confusão de umas dezenas de contribuintes com os milhares que andam a assinar não sei o quê. Bem vistas as coisas, se calhar isso também não interessa nada, porque há pessoas que ainda estão mais confundidas do que eu.

A mim, nada me admira já, pois vejo que a confusão também já anda lá pelo alto quando, volta não volta, desce tanto cá para baixo, que até parece que se pega mesmo a membros do clube dos desempregados de longa duração. É lógico que os remediados ajudem nesta emergência.

Pois eu, com o meu sentido de justiça e compreensão, sugeria a todos os peticionários e a todos os contribuintes, que mudem de estratégia, abandonando a táctica de desgaste de energias sem resultado e mudem o sentido das vossas boas e beneméritas intenções.

Simplesmente, dispersem-se por tudo quanto sejam locais onde se trabalhe neste país e peçam a todos os empregadores, implorem a todos os empresários, que se esforcem por criar um posto de trabalho, mesmo com muito sacrifício, para empregar um infeliz ser humano.

Toda a gente sabe que não é com moedinhas que se dão, seja a quem for, que se sustentam famílias numerosas, mesmo que todos os seus membros sejam muito poupadinhos. Ou meter-lhes na mão uma lista de trinta mil solidários ou mais, que se conforta um ser humano desesperado.

Tenho a sensação que esta onda comunicacional que invadiu o país, que mobilizou toda a gente, positiva ou negativamente, dos mais próximos aos mais distantes, deve estar já a atravessar fronteiras, pelo menos, deve ter chegado hoje a Espanha e a seguir, a essa Europa toda.

Nem a propósito, acabo de ouvir um ruído estranho. Parece vir de França. Sim, é um riso malandro que já se ouve perfeitamente. Confirmado. Esse riso malandreco vem mesmo de Paris e ouviu-se, ‘toma lá mais cinco’. Deve ser cêntimos, com certeza.

 

 

23 Jan, 2012

Maldição

 

Começaria por dizer que isto, que é a vida do pagode nacional, não está tão mau como o pintam aqueles que desde há muitos anos se dedicam ao jogo de pôr o país em alvoroço, a ponto de produzir resultados nem sempre proveitosos para os próprios pintores.

Em cerca de uma dúzia de anos a nossa democracia sofreu uma data de tremores de que estamos a pagar juros altíssimos, mais em termos morais que em ter-mos de abrir os bolsos e deixá-los esvaziar sem possibilidade de qualquer resistência.

Parece uma espécie de maldição que bem podia ter-nos levado à bruxa, iniciativa que, provavelmente, por vergonha, ninguém se atreveu a tomar. É meu convencimento que era melhor perder a vergonha, que continuar nesta interminável pouca vergonha.

Vamos imaginar que Guterres tinha mesmo consultado a dita. Talvez ela lhe confidenciasse que, em lugar de deixar o pântano a crescer, devia arrepiar caminho, arregaçando as calças e as mangas, dizendo claramente a origem desse infortúnio aquífero que deu início à maldição.

Era quase certo que o conhecimento dos monstros e fantasmas que já então existiam, permitiria um combate de fileiras cerradas de forma que nunca a democracia que tantos invocam, começasse, ela própria a tremer, mal supondo as bruxarias e suas maldições que então ninguém previra.

Foi assim que surgiu Barroso, o tão badalado cherne, então suposto salvador da pátria ameaçada e pantanosa. Também ele podia ter ido à bruxa, em busca da verdade da maldição do passado. Deve ter tido vergonha e ele, corado como uma laranja, foi-se bem caladinho.

Alguém se lembrou de Santana, o bom Pedro primeiro, que aceitou o sacrifício de correr com a maldição, cheio de confiança nos seus poderes de resistência, em contraste com os fugitivos anteriores. Acreditou que não havia bruxas e ignorou-as.

Não tardou porém que todos os fantasmas e monstros se unissem contra ele e foi o que se viu. Nada nem ninguém ficou do seu lado, quando raios e coriscos o cercaram sem apelo nem agravo. Foi mais um que não quis falar do pântano, acabando por ser engolido por ele.

Teve o azar de não ter aparecido uma bruxinha boa que o levasse, como aconteceu com o seu antecessor. Não teve outro remédio senão andar por aí à espera que lhe saísse a taluda. Claro que essa só sai a quem joga e, sem dúvida, ele sempre foi um bom jogador.

Bom, como é super sabido, sucedeu-lhe o José segundo que, por acaso, também não foi à bruxa e tudo o que estava para trás continuou no segredo. Também ele entrou no pântano, viveu no pântano e saiu dele empurrado por quem o lá metera.

Assim se chegou ao Pedro segundo, também conhecido por Passos ou Coelho. Não foi à bruxa, mas vieram os bruxos ao seu encontro. Mostraram-lhe, finalmente, todos os monstros e todos os fantasmas. Agora, desesperadamente, luta contra eles. Bem? Mal?

A maldição manifesta-se mais uma vez. Além dos monstros do passado, aparece agora a maldição inesperada de um pai dos ditos. Volta a haver a sensação de que é imperioso ir à bruxa quanto antes. Antes que mais alguém corra o risco de cair.

 

 

21 Jan, 2012

Coitadinho de mim

 

Se toda a gente fosse como eu, nenhum cidadão do mundo teria falta de pão à sua mesa, porque eu e a minha Zéfinha não estragamos nada, mas absolutamente nada, do pouco que nos cabe da distribuição mensal dos proventos que vêm dos impostos dos contribuintes.

Eu e a minha Zéfinha comemos umas sopinhas de leite ao pequeno-almoço, porque os cereais do pacote de que ela tanto gosta, custam um dinheirão. Eu também gostava de comer um bocadinho de pão com chouriço, mas guardo isso para o almoço, para não passar fome.

Devo esclarecer que as sopas nem sempre são feitas com leite. É tudo uma questão de preço do respectivo pacote. Quando há promoção de, leve dois pague um, tudo bem. Há leitinho. Senão, as sopinhas levam água da torneira com um pacotinho de açúcar, e está feita.

A minha Zéfinha está um pouco mais magrinha que eu. Ando cá desconfiado que é por causa da tripa. A minha é um pouco preguiçosa e tenho sempre a sensação de que ando inchado. Isso dá aos outros a ideia de que estou gordo. Ela não. É um vê se te avias.

No entanto somos um casal muito feliz. Sobretudo porque gostamos de ver quem ganha mais que nós, ainda mais felizes que nós dois. Porque temos a noção de que esses também trabalham mais que nós. Até porque eu e a minha Zéfinha pouco fazemos.

É verdade que se fizéssemos alguma coisa de jeito, tínhamos de comer muito mais para nos aguentarmos. Por exemplo, a minha Zéfinha tinha de comer pão com chouriço, como eu, ao almoço. Assim, coitada, lá se vai alimentando com uma côdea com azeitonas.  

Sim, porque o miolo fica para mim, que já tenho a dentuça um tanto gasta e dinheiro para outra, nem vê-lo. Nós não temos enfermeira de família, nem conta no banco, nem cartão de crédito para dar uma balda. Portanto, nem pensar em gastar o que não temos.   

Podemos dizer que a nossa felicidade depende muito do pacote. Vamos ao Pingo Meio Doce e percorremos as prateleiras todas. Só compramos os pacotes que estejam a metade do preço. Normalmente, são aqueles que os holandeses não querem. Mas a nós dão um jeitão.

Se todos os portugueses fizessem o que eu já disse muitas vezes, a última foi ontem, não estava cá a troika hoje, nem nunca cá teria estado. Tudo porque eu e a minha Zéfinha, há muitos anos, todos os meses púnhamos alguma coisa de lado.

Sabe-se lá com que sacrifício, nós dois, chegámos a pôr de lado as nossas misérias, virando as costas um ao outro, para não desperdiçarmos aquele resto de energia que constituía a nossa sobrevivência. Nunca desperdiçámos nada, porque sabemos que no poupar é que está o ganho.

Há por aí quem diga que eu e a minha Zéfinha podíamos dar o exemplo de como gastar muito e bem, em lugar de andarmos por aí a fazer propaganda aos bancos, dizendo que convém sermos poupadinhos. Pois podíamos, se os outros poupassem mais, para nós dois termos mais.

No entanto, se for preciso, eu e a minha Zéfinha, cá estamos para as curvas. Contem connosco, embora eu já não possa contar convosco.

 

 

19 Jan, 2012

Menino ou menina

Talvez não seja um exemplo muito convincente, mas que é um exemplo docinho e vistoso, não há qualquer espécie de dúvida. O pastel de Belém, vulgo, pastel de nata, foi apresentado como a salvação deste país de Álvaro, Passos e Gaspar.

Dois puros enganos num só parágrafo. O pastel de Belém não tem nada a ver com o vulgar pastel de nata, tal como este país que é Portugal, não é de nenhum Álvaro, nem de nenhum Passos, nem de nenhum Gaspar. Portanto, os primeiros enganos são exclusivamente meus.

O pastel de Belém nem sempre é docinho nem vistoso. Muitas vezes há quem tenha de o mascar com uma cara de enjoo que mete medo. Como se o dito pastel falasse. Porque há quem o entenda e oiça através do seu sabor, um rol continuado de azedumes que dão uma azia danada.

Não sei a que propósito mas, quando oiço falar o Álvaro, lembra-me um estribilho que foi muito assobiado em tempos que já lá vão. Dizia ele, ‘a caminho da Califórnia vai um chato aos trambolhões’. A Califórnia, evidentemente, é que não tem nada a ver com isto.

Nesse estribilho, também está desactualizado o ‘vai’. No resto, há ali qualquer coisa que toca a minha sensibilidade. A mim, sempre fui extremamente inventivo, soava-me melhor ‘Canadá’ em lugar de ‘Califórnia’ e ‘vem’ no lugar de ‘vai’, com ligeiras adaptações.

Os tempos, dos verbos, claro, é que ficam em contradição com a acção da minha imaginação, pois o chato, na verdade, já cá chegou. Portanto, nem sequer vem. Já veio. Quanto aos trambolhões, parece-me que isso são exageros de imaginações férteis.

Mas, se der mais uma volta ao texto, que é como quem diz, ao estribilho, também se pode pôr a hipótese de ‘a caminho do Canadá vai um chato aos trambolhões’. Compreensivelmente, isto não é verdade, visto que neste momento não há chato nenhum a viajar.

Contudo, está muito na moda dizer-se que, o que é verdade hoje, pode ser mentira amanhã, tornando viável essa viagem para daqui a três meses. Isto, porque há quem esteja num tempo de enganos e desenganos, tudo levando a crer que pode haver, entretanto, muitos partos prematuros.

As barrigas já estão crescidinhas e começam a aparecer as primeiras imagens pré natais nos monitores, muito imprecisas ainda, mais faladas que identificadas, quais nascituros que vão revolucionar os destinos dos seus mais chatos predecessores. 

Enquanto Passos acelera com prego a fundo, Gaspar e Álvaro não largam o travão de mão. Daí que o período de gestação esteja agora fixado nos três meses. Três meses em que tudo tem de sair. Para bem ou para mal das boas ou das canceladas viagens às origens.

Entretanto, a salvação desta esperança de sucesso, ou o fim triste desta já longa espera em agonia, está muito no sucesso, ou no fracasso, dos resultados promocionais do pastel de Belém. Afinal, uma coisa tão pequena, bem pode desenganar-nos de vez.

São três meses que, somados aos seis que já decorreram desde o acto, perfazem, precisamente, os normais nove meses para a decisão final que nos vai dizer se temos menino ou menina. Vamos saber, finalmente, se temos enganos ou desenganos.      

 

17 Jan, 2012

Vamos lá acordar

 

À primeira vista pode parecer que para acordar é preciso estar a dormir. No entanto, segundo notícias que li depois de já ter acordado, às três da matina houve uma data de noctívagos que, mesmo cheiinhos de sono, mas ainda acordados, lá conseguiram fazer um acordo.

Ora, se eles conseguiram fazer um acordo, obviamente que acordaram. Alguns deles, presumo eu, deviam estar mesmo exaustos, a ponto de não serem capazes de evitar umas valentes cabeçadas na mesa, tão sonoras que mantinham os outros noctívagos bem acordados.

Evidentemente que é possível acordar uma data de coisas naquele estado de sonolência em que muita gente costuma cair, precisamente naquele período a que também chamam ‘entre as duas e as três’, isto é, quando a cabeça oscila e os olhos viram e reviram entre as pálpebras.

Certo é que houve um acordar suficiente para dizer ‘ah que sim’ e, se alguém estava ali a dormir, agora que se aguente o suficiente para, com toda a lucidez, com os olhos bem abertos, conseguir assinar os papeis, como é da praxe, sem vacilar e sem assustar os restantes assinantes.

Deste acto de acordar, resultou um acordo. Precisamente, às três da madrugada, hora a que o rouxinol costuma começar a cantar. Só que o rouxinol canta noutra época do ano, se calhar por causa das constipações, que estes madrugadores não temem, porque tomam pastilhas de mentol.

Enquanto eles, os madrugadores, iam acordando, os sonhadores que deles dependem, em casa ressonavam a sono solto e, nem de longe nem de perto, imaginavam que lhes estavam a tratar da saúde. Quando o despertador os acordou e o rádio falou, toda a sonolência abalou.

Como sempre, há os que cantam e os que choram. Tal como os que tiram do pote e os que têm de encher o pote. Mas, o pote, agora, não é para aqui chamado, porque isso não interessa nada. O que interessa, e muito, é que no meio disto tudo, os que andam a dormir, não deviam acordar.

Nada de confusões. Não deviam acordar, ou seja, não deviam fazer acordos. Só porque não deviam andar a dormir. Principalmente, durante a noite, fora de horas, quando quem representam se encontra nos braços de Morfeu, sonhando com tudo de bom.     

Tudo de bom para os que têm motivos para cantar. Tudo se encaminha para que na próxima ronda, a maratona negocial seja ainda mais emocionante. Não me admiraria nada que o trabalho fosse elevado à categoria de lazer para toda a gente.

Lazer para os que estão habituados a rir e para os que sempre choraram. Ora, se para o lazer se paga, lógico será que, para trabalhar, se passe a pagar, em lugar de receber. Se nas férias se faz lazer, e se o trabalho passar a lazer, adeus férias definitivamente.

Mas, tudo isso será insuficiente se, com aquele sentido de rigor e obediência ao mais puro patriotismo, se continuar a fugir aos impostos. Ninguém, mas mesmo ninguém, está dispensado de pagar, consoante o lazer de que usufruir. Portanto, pagar para trabalhar e pagar impostos.

E que ninguém venha com a velha treta de como é que se pode. Isso era dantes. Não se podia. Mas agora pode. Já é tempo de mudar de vida. Portanto, bem-dispostos, vamos lá acordar.

 

 

15 Jan, 2012

Novas de S. Bento

Os mais extremados vigilantes de S. Bento tiveram ontem um dia de pesadelo semelhante àquele que se sente quando a terra se agita debaixo dos nossos pés, como se ameaçasse engolir-nos de um momento para o outro. Mas, felizmente, parece que não foi nada.

Não foi, mas podia ter sido, porque alguém vindo de Paris, não se sabe a que propósito e, não sei se antes ou depois de almoço, passou perto de S. Bento. Ora, isso foi quanto bastou para que os vigilantes redobrassem de actividade, sobretudo na linguagem que habitualmente lhe dedicam.

Pensei eu que talvez temessem alguma nova oportunidade dada a tão indesejado visitante, o qual bem podia deixar-se ficar por lá, evitando vir a incomodar os sempre intranquilos vigilantes, receosos de que ele desse o golpe de misericórdia ao pouco que resta do que cá deixou.

Além disso, sabendo-se que em S. Bento funciona o único centro de novas oportunidades, dos muitos que o visitante criou, era natural que os vigilantes redobrassem de atenção. Realmente, com toda a razão, os alarmes soaram em todo o país e até se alvitraram meios de o reter.

O visitante almoçou com amigos que não devia ter, comeu o que muitos vigilantes gostariam que tivesse alguns pozinhos milagrosos, poluiu a capital com o seu ar de parisiense, talvez herdeiro da vida e dos tugúrios de Quasimodo, o Corcunda de Notre Dame.    

De qualquer modo, um perigo para a tranquilidade do centro de S. Bento, onde as novas oportunidades são exclusivamente destinadas aos residentes actuais e seus activos colaboradores, pois ninguém mais pode ter acesso às novas técnicas governativas ali desenvolvidas.

Sabendo-se como o visitante constitui um perigo para a humanidade em geral, para o país em particular, e para as novas oportunidades, um extermínio inexorável, considerou-se, e muito bem, que Lisboa e o seu coração, S. Bento, podiam sofrer um abalo do mais elevado nível.

Contudo, havia ainda um outro grupo em pânico, na verdade mais restrito, mas, mesmo assim, suficientemente influente para salvaguardar os perigos que lhes minavam o pensamento. Era inevitável que o visitante, um perigoso emigrante clandestino, não se aproximasse de S. Bento.

Pensava este grupo que o parisiense à solta por Lisboa, com o palácio no pensamento, podia vir a ser convidado por algum visionário tresmalhado, a tomar a seu cargo a monitorização do Centro de Novas Oportunidades de S. Bento, entregando-lhe a formação dos seus alunos.

Esse receio tinha os seus fundamentos. São conhecidas vozes que detestam as novas oportunidades, porque dizem ser um meio de promover ignorantes, além de se gastarem balúrdios com a sua manutenção. Daí que a coisa esteja quase reduzida a S. Bento.

Porém, o visitante tem uma grande experiência em todas as matérias ali leccionadas, motivo porque alguém possa ser tentado a induzi-lo, a tomar conta dessa formação. No momento actual que o país atravessa, todos os contributos são, não só bem-vindos, como obrigatórios.

São estas as novas que, desde ontem, circulam por perto de S. Bento. Mas, em boa verdade, dada a importância do tema, não se fala noutra coisa no país inteiro. Coisa que eu não podia ignorar.

 

 

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