Coelho manso
O país cinegético adora um bom prato de coelho à caçador, de preferência onde se inclua coelho bravo, muito mais rijo e saboroso que o manso. Obviamente que, sendo manso, é muito mais molinho, uma vantagem para quem já tem poucos dentes de origem.
Qualquer chefe cozinheiro sabe perfeitamente fazer com que o coelho bravo ou manso adquira a textura correcta de modo a ser apreciado como uma das muitas delícias da gastronomia portuguesa, pois os tachos, só por si, já têm aquele tarro que de tudo faz óptimos petiscos.
Tacho português e coelho português querem dizer que estamos bem entregues no que toca a paparoca. Sobretudo, no que toca a coelho manso, pois o coelho bravo está pela hora da morte, no que mexe com o preço e na facilidade de o encontrar.
Feliz de quem tem um bom parente caçador e frequentador de uma daquelas coutadas que o país ainda tem e onde se pode caçar com a tabela de preços sempre na frente dos olhos. Mas, quem quer ter bom coelho bravo para si, para a família e para os amigos, está bem.
O resto do país tem de contentar-se com o coelhinho manso que, coitado, lá vai enganando muita gente, principalmente nos restaurantes sem iva. Mas o coelho também o não merece, por mais marinado e por mais temperado que o metam nas tachadas que apresentam.
Dizem os entendidos que o coelho manso, se for bem esfregado com carqueja, perde muita daquela doçura que o caracteriza e adquire aquele acre característico do coelho bravo. Depois, dizem que se deve temperar com alecrim, talvez aos molhos, para saber ao que não é.
O nosso coelho manso já lá não vai com carqueja nem com alecrim, porque foi baptizado lá fora, na moleza do calor tropical e amansado, também lá fora, nos densos e poluídos ares germânicos, para onde os caçadores furtivos cá de dentro o mandaram a temperar-se.
Já ouvi dizer que lá, na Germânia, não há carqueja de jeito, portanto, coelho, só doce. Aliás, não é qualquer coelho que aguenta ser esfregado com carqueja. É demasiado abrasiva para peles de leite-creme não queimado. Mas o nosso coelho bem merecia esse castigo.
Castigo porque ele é manso de mais, desde que a Germânia o devolveu já temperado, com carqueja de menos e alecrim de mais. Os caçadores furtivos também não lhe acham todas as virtudes que gostariam e, de vez em quando, tossem ao mastigá-lo com mais vagar.
Com alguma razão dizem que não era preciso ir lá tão longe, a gastar dinheiro em embalagem, quando cá, ainda o temperavam melhor, nem que fosse com uma boa porção de pimenta na língua e uma ou duas malaguetas bem vermelhinhas para espevitar.
Os caçadores devidamente munidos da sua licença, habituados ao coelho bravo das serras do norte e centro, ou das planícies alentejanas, estão em polvorosa. Dizem que lhes estão a estragar o negócio, vendendo gato por lebre a todos os consumidores, alegando que o coelho não é para o povo.
Mas qual coelho, dizem os consumidores. O que vem da Germânia já temperado devia ser imediatamente devolvido, metido numa marinada de vinho do Cartaxo, com muita carqueja por baixo e por cima. Depois, que nos digam se gostam.