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O ano que decorre está a ser um ano completamente atípico, o que quer dizer que tudo nos vai acontecendo fora de tempo. Foi assim com a chuva que não caiu quando devia, foi assim com a austeridade que já devia ter fim marcado, mas parece que ainda mal começou e foi assim com as medidas que já deviam estar no terreno e ainda estão apenas no pensamento e nas palavras.
Valha-nos a consolação de que tudo está a correr melhor que o previsto o que, também isso, prenuncia um comportamento atípico da nossa situação. Se estávamos preparados para aguentar cinco anitos de marcar passo, vamos ter de nos contentar com uns dez de marcha lenta. Isto, se não houver um qualquer agravamento do estado de lentidão de quem pensa e diz o que nos vai acontecer.
Porém, a maior atipicidade do ano que decorre tem a ver com o calendário. Parece que já não há problemas com os feriados que se iam, mas já não vão. Ficamos com eles e com o merecido descanso para a nossa trabalheira coletiva. E, pasme-se, o dia de S. Miguel, que costuma celebrar-se a vinte e nove de setembro, este ano caiu para maio, curiosamente, à volta de vinte e nove.
O dia de S. Miguel costuma celebrar-se no ciclo de vida rural em que as colheitas estão no auge, ou seja, na transição do verão para o outono. Nas feiras da época, que vêm da idade média, estão presentes, o melão, a cereja o queijo e o mel, entre muitos outros produtos agrícolas. Termina assim um período de grandes azáfamas para quem vive da terra e entra-se no período que devia ser de chuvas e mais repouso.
Mas, as feiras de S. Miguel são também, para os pequenos criadores rurais de gado, o tempo de tirarem proveito da procriação e engorda dos seus animais, vendendo e comprando, conforme os seus interesses de negócio. Nos dias de hoje, estas feiras de S. Miguel estão um tanto desvirtuadas, pois o gado já anda quase exclusivamente pelas grandes herdades e os produtos hortícolas pelos hipermercados.
Isso não significa que não tenhamos o nosso S. Miguel. Temos agora a decorrer o S. Miguel de maio, que não tem propriamente a ver com gado, mas com gente. Que não tem propriamente a ver com o lançamento de estrume à terra para a tornar mais produtiva, mas que tem a ver com mãos que de tanto mexer no estrume dos gabinetes alcatifados, andam vermelhos de comichões estranhas.
Temos um santo chamado Miguel que parece ter vindo da idade média até hoje. Tal como o fez D. Dinis às feiras e mercados da época, ao dar-lhes a importância e o nível de engrandecimento dos negócios, mas deixando de ser feiras francas, para começarem a ser cobrados os assentos dos vendedores. Era, já então, a evolução natural de obrigar quem produz, a pagar para vender os produtos produzidos.
O nosso S. Miguel de maio parece ter o condão de saber dizer verdades que, pela maneira como são ditas, escondem perigosas mentiras, muito piores que a troca das feiras de setembro para maio. Como se fosse possível colher agora os produtos que só pelo verdadeiro S. Miguel estarão maduros. Como se fosse possível colher agora o que ainda nem semeado está. Tão pouco o que agora está a rebentar.
E o que está a rebentar são mais relvas daninhas que plantas de sementes lançadas à terra com a convicção de que, quem bem semeia, bem colherá. Ora de ervas daninhas ninguém conseguirá colher nada, pois elas apenas servirão para alimentar chamas alterosas no dia em que rebentar qualquer incêndio fortuito, ou resultante de ação premeditada de um qualquer ousado incendiário.
E os incendiários até podem não ser vulgares criminosos como os que tanto fustigam as nossas florestas. Podem mesmo ser incendiários urbanos, que detestam fogos florestais, mas que não toleram que lhes incendeiem as vidas e lhes destruam os bens e os haveres que, muito ou pouco, lhes custaram a cultivar. Para esses, o S. Miguel de setembro ou de maio, tal como o veem, não pode continuar a ser santo.