Mas que coisa
Estamos no final do mês de Agosto e parece que estamos no primeiro de Janeiro. Quiçá talvez até pareça que estamos no Verão do ano passado. É verdade que nem tudo está igual. Em Agosto está muito mais calor que em Janeiro e no Verão deste ano a seca está muito mais dolorosa que a do Verão passado.
No entanto, pelas contas do pessoal que anda na rua, de Janeiro para Agosto, só os termómetros notam diferenças, pois a temperatura da vida real já não conhece qualquer subida desde há muito tempo. E se a medirmos de Agosto a Agosto, temos boas razões para começar a ficar gelados em pleno Verão.
Apesar disso, conforta-nos ouvir o doutor Borges contrariar todas as evidências de desconforto geral, transmitindo-nos todo o seu otimismo baseado, não na sua ignorância, mas na sua convicção de que todos os portugueses são iguais a ele, tanto no seu modo de vida, como no seu modo de pensar.
Certamente que seria um erro colossal da minha parte atribuir-lhe os mais leves sinais de ignorância, apesar de ele me rotular de ignorante primário, bem como a outros como eu, através da contundente ofensa que nos faz, ao classificar a nossa indignação e a nossa estranheza de maneira muito semelhante a ignorância.
Se ele diz que as nossas vozes são uma gritaria, então eu fico automaticamente autorizado a responder na mesma moeda, dizendo-lhe que as suas opiniões não passam de ‘borgisses’ de um ‘borgesso’ qualquer, só comparáveis aos sons que certos animais emitem quando estão com muita fome.
Claro que, de certa maneira, à maneira dele, obviamente, também ele está cheio de fome, não de pão, mas de interesses que roçam a vileza, numa sociedade que tem vergonha de se comparar a ele, sociedade essa que é capaz de ter opiniões muito menos bestiais, que aquelas a que o borgesso nos vem habituando.
Apesar de, em nada me surpreenderem os seus achaques, também gostaria de manifestar a minha vontade e o meu ardente desejo de que seja ele, e não os portugueses como eu, a abater, sem violência, mesmo verbal, a sua inaudita resistência à mudança, que tão mal está a manter o país no charco.
Primeiro, os silêncios que os seus ‘cobertores’ mantiveram, certamente a ver no que isso dava. Depois, as vagas e comprometidas palavras de, nem sim, nem sopas, como que a acalmar as tais vozes, que não a minha, claro, altamente incomodativas e às quais não se pode classificar de gritaria, nem de resistentes à mudança.
A trilogia Borges, Relvas, Passos está a mostrar ao país uma coerência e um certo modo de estar no poder, de que só eles se podem orgulhar. Andam tão unidos que, volta não volta, lá vão tropeçando uns nos outros. Depois, é bem evidente a dificuldade que eles demonstram em voltar a acertar o passo.
Trilogia que vai ter muitas dificuldades em ouvir ‘a gritaria e as resistências à mudança’ que já se ouvem no quintal do poder. E essas, mesmo que sejam apenas para sair momentaneamente da sombra, têm muito mais relevância do que a vozearia que vem da rua, ou o silêncio tático que vem de cima.
Mas que coisa esta. Um palácio cheio de silêncio é muito silêncio junto, numa altura em que as vozes da rua já não são só as dos habituais ditos arruaceiros. Numa altura em que a dor de barriga aperta, até já se reconhece a utilidade de falar com o dito irresponsável opositor e bombo da festa, em qualquer hora e em qualquer dia.
A trilogia reinante tem demonstrado que á sua volta tem andado muita coisa com um certo ensombramento que faz pensar em algo semelhante a diabólico. Vamos lá ver se, mais uma vez, essa mesma trilogia, não está à espera que venha de lá o anjinho a emprestar-lhe a aspirina para a crónica tosse. Mas que coisa!...