Por causa das coisas
É muito difícil a gente entender certas coisas que nos vão massajando o juízo por mais pacientes, e até benevolentes, que tentemos ser. Sim, porque os pacientes e os benevolentes são cada vez mais raros nestes tempos de aflições e nervosismos à flor da pele que consomem energias e provocam males e maleitas que acabam por ceifar muitas vidas precocemente.
Por causa das coisas, só e apenas por isso, aborrecemos e somos aborrecidos como se não pudéssemos pedir desculpa ou receber desculpas, em tantas situações em que ninguém perdia nem ganhava nada, para além de uma tranquilizante troca de sorrisos. Será que o mundo vai acabar sem que os humanos se reconheçam como seres que, tendo nascido a chorar, sabe–se lá porquê, não são capazes de morrer a sorrir, com a consciência tranquila por, nem um bocadinho, se terem preocupado durante a vida toda, em não querer saber porque distribuíram tanto ódio e desprezo entre os seus semelhantes.
Até parece que estou a ouvir alguém dizer - toma lá, isto é por causa das coisas. Pois é. Por causa das coisas que alguém disse ou fez. É o troco de um recebimento devido ou indevido. São coisas que se pagam sem se dever, ou são dívidas que nunca serão pagas. Contas de maus pagadores a muito piores devedores.
Por causa das coisas, estou eu aqui a escrever coisas e loisas que ninguém me encomendou. Também não esperava mais que alguma tolerância, já que isto que estou a fazer é hoje similar ao que faz muita gente que, como eu, reage assim: fazendo qualquer coisa para que não perca de todo a capacidade de pensar pois, efetivamente, estou a fazer qualquer coisa, só para não ficar choné. É por causa de coisas como estas que estão a acontecer no mundo, que os humanos se vão revoltando cada vez mais, muitas vezes sem razões para fazer tais coisas, mas fazem-nas simplesmente por causa das coisas. Porque as coisas não podiam acontecer-lhes com tanta injustiça, por vezes com tanta malvadez, ou não podiam acontecer-lhes só a eles. Podiam acontecer também aos que mais as mereciam, mas a esses acontecem outras coisas bem mais gostosas e bem mais saudáveis.
A fome, a sede, o frio o calor, as doenças, os silêncios e tantas outras coisas, são o prémio para tanta gente que sofre só porque são coisas de gente azarada, pois a sorte grande saiu sempre aos outros.