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afonsonunes

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06 Dez, 2008

O burro e a nora

 

 
Nos dias que decorrem ainda há burros e ainda há noras, mas será muito difícil encontrar o pacífico animal, girando à volta da geringonça que predominava nos campos de rega de tempos não muito distantes. O burro puxava os alcatruzes de olhos vendados, fazendo a água chegar junto do homem que a guiava de sacho na mão.
Essa geringonça chamada nora, ainda hoje é referida, quando se está em dificuldades para chegar onde se quer, pois é frequente ouvir alguém dizer que está à nora para resolver um problema difícil. Andar horas e horas em círculo, ainda por cima de olhos fechados, é o inferno que se coloca a muitos cidadãos nos dias de hoje, nas circunstâncias mais diversas em que tem de percorrer o calvário da burocracia.
Em boa verdade esses cidadãos não são burros à volta da nora, mas lá vão sendo tratados como tal, embora as leis vão sendo anunciadas, supostamente no sentido de haver menos burrice nos procedimentos. As leis podem ser novas, mas as ideias continuam a ser velhas, embora os velhos vão saindo. Porém, em muitos casos, até parece que os novos que entram, são mais burros que os velhos que saem, porque as vendas que trazem nos olhos, além da ignorância de origem, tem a marca de qualidade da altivez, da incompetência e do desprezo pelos direitos de quem aparentemente os importuna.   
Esta nora que é o país, onde todos circulamos, de olhos abertos ou fechados, já tem máquinas para tudo, inclusive para que os burros já não tirem água mas, curiosamente, parece que cada vez se mete mais água por todo o lado, o que contraria frontalmente a função da nora e do burro de antigamente. A nora fica mais cheia, em lugar de ir ficando mais vazia, enquanto o burro vai ficando cada vez mais folgado, porque a água deixou de estar no âmbito das suas competências.
Com esta extraordinária evolução, o homem deixou de depender do burro para ter água com fartura, mas passou a depender da máquina, quase sempre mais rápida, mais eficiente que o burro, mas muito mais susceptível de arreliadoras avarias e de paragens por vezes bem perniciosas. Então, lá ficamos todos à nora, com falta de água e até com falta dos burros para que os alcatruzes voltem a rolar na roda da velha nora e despejem o precioso líquido que nos rega as gargantas ressequidas de tanto barafustar.
As máquinas, que deviam ser sempre comandadas pelos homens, foram-se tornando caprichosas e ciosas da sua importância, em muitos casos com a conivência dos seus controladores, que adormeceram encostados a elas, confiantes de que elas lhes dariam o sossego e a prosperidade de vida fácil, dormindo tranquilamente de olhos bem fechados. Os burros, por sua vez, abriram os olhos e fugiram das noras e dos homens, num gesto de emancipação consciente de que não há animal mais burro que o homem.
Senão, vejamos, por exemplo, quem é que, hoje em dia, anda constantemente à nora? Eu diria que são eles que nos comandam, e somos nós que decidimos que seriam eles a comandar-nos.
Haveremos de saber quem são os autores das maiores burrices, e haveremos de saber se a próxima nora que vier a seguir, terá mais ou menos alcatruzes para nós puxarmos.